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Ainda uma vez, o ovo da galinha

Tem-se publicizado, desde há alguns anos, em textos de veganas e de veganos, a noção de que “menstruação” de galinha, termo usado para designar “ovos”, não se come. Vamos pontuar bem a questão, para ver se ficam claros os erros de tal afirmação.

O primeiro erro, de quem usa tal expressão sem pensar melhor no seu alcance e propriedade, é produzir confusão entre estes dois conceitos: “ovulação” e “menstruação”.

O ovo é produto de “ovulação”, não é “menstruação”. Só quem nunca parou para pensar na própria ovulação como processo que ocorre nos ovários, envolve as trompas de Falópio e se encerra no útero, levando aquela microscópica célula a se deslocar até ele, é que acaba por confundir os nomes destes dois processos, um, produtivo, ovulação, outro, excretório, menstruação.

Nas fêmeas mamíferas, ao final da “ovulação” não ocorre uma “desova”. Elas não “botam” ovos. Somente fêmeas de répteis, batráquios, aves e insetos, para citar alguns casos, justamente as que não possuem um útero no qual o embrião possa ser alimentado endogenamente até atingir o ponto de poder viver fora do corpo de quem o concebeu, é que expelem seus ovos. Mas tais fêmeas não menstruam.

Resumindo, quando alguém escreve, “ovo é menstruação”, confunde “ovulação” (a separação do ovo do corpo da fêmea) com “menstruação” (o descarte de tecidos uterinos não úteis), a fase final de excreta uterina, existente nas fêmeas mamíferas quando seus óvulos não foram fecundados nas trompas de Falópio.

Menstruação é o descarte da mucosa, do tecido epitelial que forrara o útero, preparando-o para a nidação que não ocorreu. Quando chega ali uma célula reprodutora não fecundada, um óvulo, ela é descartada junto com todo o aparato epitelial que a teria nidado à parede do útero. Ao descolar essa camada os vasos sanguíneos são abertos, levando ao sangramento. Isso é menstruação, algo que não ocorre em fêmeas avinas, apenas em fêmeas mamíferas.

Se usarmos o conceito correto para designar o resultado de um processo ovulatório, o ovo, evitaremos este primeiro erro, que, bem o dizem algumas mulheres, leva a um segundo, o de forjar uma imagem de algo nojento para dissuadir os come-dores de comerem ovos, argumento que não tem impacto algum sobre o consumo de ovos, mas acaba reforçando a repugna da menstruação. Misoginia pura.

Vamos ao terceiro erro, o desvio do argumento ético. A razão pela qual não comemos ovos não é por serem nojentos, algo que eles, de fato, não são, para quem foi criado numa cultura ovômana. É porque, para obtermos ovos, alguma galinha foi usada. Galinhas nascem para viver até 15 anos (galos até 20). Com a escravização industrializada para coleta de seus ovos, não passa de dois anos seu tempo de vida “útil” como galinha sexualmente explorada até que a morte por exaustão ou a degola a separe do galpão onde estão dezenas de milhares de outras na mesma condição sexual.
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Esta é a razão pela qual não comemos ovos: o produto da “ovulação” das aves e dos répteis não tem a finalidade de servir de alimento para nós. Os nutrientes ali presentes têm a finalidade natural de deixar nascer outros indivíduos daquela espécie. É para isso que a ovulação existe, tanto nas aves quanto nas mamíferas.

Mas se for “ovo de galinha feliz da vovó”, pode? Por que você faria isso, colher ovos de galinhas, se elas estiverem ali apenas para viver sua vida galinácea e não para servir a qualquer propósito seu? “Ah! Porque se o ovo só for recolhido e comido, a gente não torturou a galinha!” É verdade. Mas como é que se tem galinhas por ali, botando ovos, se por detrás disso não está ainda, bem arraigado, o conceito de que galinhas botam ovos para nos alimentar? E, caso a galinha esteja na sua área porque você a resgatou de algum sistema, ainda assim, ela só está agora sob a sua tutela porque há um sistema que precisa ser abolido, este que formou em nós a noção de que galinhas servem para botar ovos para nós.

“Mas se tem ovo por ali, por que não podemos apenas colhê-los?” Em primeiro lugar, pela desnecessidade de tal consumo. Se você se alimenta direito, e essa responsabilidade é sua, as galinhas não estão aí para fechar sua contabilidade nutricional, não precisa esperar que uma galinha ponha algum ovo para complementar seus aminoácidos essenciais, pois você já os obtém de alimentos vegetais ricos neles também. Em segundo lugar, porque ovos são para alimentar pintainhos antes do seu nascimento, não humanos, seja lá em qual idade for.

“Mas se mantenho a galinha feliz, por que não posso usar os ovos que ela põe?” Porque, se você sustenta uma galinha e depois usa os ovos que ela põe, você está obtendo benefício dela. E se os ovos que a galinha põe estão bem à sua vista, isso significa que a galinha está aprisionada por você, o que deve bastar para tirar de você o direito de pensar que está sendo bonzinho com ela e, por isso, pode obter algum benefício pessoal. Se você deixar os ovos de suas galinhas felizes, soltos e felizes por ali, não tenha receio, eles serão bem aproveitados por outros animais que não têm como ir ao supermercado e se prover de certos aminoácidos essenciais. Você tem essa escolha. E se esses ovos estiverem fecundados (galados), eles poderão transformar-se em novas vidas. As galinhas saberão como fazer isso, basta você dar proteção a elas, se necessário, sem cobrar seus ovos em troca.

Por fim, se você vive no sítio e come os ovos das galinhas que você mantém, já não pode dizer que come ovos de galinhas suas quando viaja ou come fora de casa. E se você habitua seu corpo a ter certos aminoácidos essenciais, usando ovos de galinhas, em vez de alimentos vegetais, quando estiver com fome fora de casa, você sempre botará seu olho em alimentos que contenham ovos ou seus derivados, porque terá sido esta a informação que você enviou ao seu cérebro, a de que naquele alimento está algum aminoácido que ele precisa mandar sintetizar para formar a cadeia final proteica em seu corpo.

O respeito pela vida e pela liberdade específica de todos os animais não inclui qualquer contabilidade ou negócio feito à custa do animal para benefício humano. Não admitimos que algo do gênero seja feito conosco e com o que está em nosso corpo, cumprindo propósitos nossos, não alheios.

Como é que pensamos em ser éticos, ignorando que o princípio ético cobra de nós respeito por todos os animais, ainda que nenhum deles nos “sirva” para propósito algum?

Exigimos respeito de todos os humanos por nós. E, se contabilizarmos o que fazemos em troca, favorecendo a todos eles, qual é o benefício que eles têm com o fato de estarmos vivos? O único benefício que fazemos a todos os outros é justamente o de não privá-los de sua liberdade nem matá-los para servir a qualquer impulso ou desejo nosso. Fora isso, pouco, ou mesmo nenhum benefício os outros têm com nossa presença no mundo. Isso é replicado no caso dos outros animais. Ou eles não têm benefício algum da nossa presença na vida deles, ou eles só têm malefícios, ou eles têm algum benefício porque nos aproveitamos deles para extrair algo para nós.

Entretanto, o direito à liberdade e à vida não tem nada a ver com a utilidade que elas possam ter para outros. A vida e a liberdade de expressão próprias de um ser senciente só precisam ter utilidade para ele. Isto não inclui o direito de usar qualquer outro ser senciente como meio útil para avançar sobre vantagens que nos beneficiam.

O mínimo que temos o dever moral de conceder aos outros animais é da mesma ordem: que suas vidas sejam úteis e cumpram a finalidade para a qual se destinam. Sua evolução não indica que estejam aí para nos servir. De nós, o que temos que esperar, é que não escravizemos nem exploremos ou matemos ninguém para “servir” aos nossos propósitos, propiciar-nos benesses e acumular utilidades e futilidades. É tempo de abolir a ideia de que animais estão aí por sua utilidade para nós.

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