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Artigos, Artigos sobre Direitos Animais.

O Dia Internacional dos Direitos Humanos, não por coincidência, é também o Dia Internacional dos Direitos Animais, portanto, quero abordar uma questão fundadora: por que animais têm direitos?

Essa questão é comumente tratada sem o devido cuidado pelos defensores dos direitos animais, mesmo aqueles que se esforçam em buscar os fundamentos filosóficos por trás dos seus princípios. Eu mesmo, por muito tempo, não dava a devida atenção a esse tema fundamental na hora de dialogar com não-veganos. Isso acontece muito em função de dois problemas.

Em primeiro lugar, é muito comum que as pessoas tomem por senso comum aquilo que elas conhecem, acreditam e tomam (em suas mentes) como óbvio. Como se o que fosse óbvio, para elas, fosse conhecimento de domínio público – o que frequentemente não é verdade. As bases do pensamento que advogamos, como defensores dos direitos animais, nem sempre estão claras aos demais. Em segundo lugar, muitos defensores dos animais também não têm clareza sobre o que são direitos animais, por que animais têm direitos e por que quem acredita que animais têm direitos devem ser veganos. Mesmo ativistas dedicados têm dificuldade de entender essas questões – o que é um problema grave, pois a falta de conhecimento pode levar à incoerência nas ações e à confusão no discurso, reduzindo significativamente a força e a eficácia do ativismo pelos animais. Para defender nossos princípios, o primeiro passo é buscar compreender aquilo que fundamenta nossas escolhas éticas.

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Por que animais não têm direitos?
Para começarmos a falar das razões por que animais têm direitos, sugiro começarmos pelo caminho contrário: os pensamentos por trás daqueles que defendem que animais não têm direitos. Nessa discussão vejo duas linhas de raciocínio básicas: uma do direito, outra da biologia. Então vamos a cada uma delas.

1. A objeção do direito
Existem duas vertentes do direito que são relevantes para o debate da questão dos direitos animais: o direito moral e o direito legal. Os que defendem que animais não têm direitos, em geral, rejeitam tal atribuição de direitos em função de uma visão de direitos baseada em direitos legais.
Essa visão que nega direitos aos animais não-humanos é baseada numa leitura contratualista conservadora, a qual afirma que só têm direitos aqueles indivíduos que também têm deveres. Os direitos e deveres são firmados por meio de um contrato – logo, só tem direitos quem for capaz de firmar contratos. Direito, nessa concepção, é um benefício que o indivíduo obtém em troca de um compromisso, pelo qual ele está obrigado a oferecer, em troca, algum outro benefício, por meio do qual se garante, assim, o convívio harmonioso e pacífico e, em última instância, a sobrevivência e prosperidade de toda a sociedade. Essa teoria contratualista do direito está toda fundada na filosofia de Thomas Hobbes e sua obra O Leviatã, de 1652.

Aparentemente lógica, essa filosofia hobbesiana tem dois problemas muito básicos. O primeiro deles, de ordem ética e moral, é que, longe de garantir direitos, ela exclui grande parte dos indivíduos humanos da comunidade de direitos. O contratualismo hobbesiano condiciona a ética à política – ou seja, a lei determina o que é ético e o que não é – mesmo no caso em que uma lei pareça injusta. Entre indivíduos que não podem assinar contratos e não podem, portanto, contrair obrigações, podemos incluir: recém-nascidos, crianças, comatosos, pessoas com certos tipos de enfermidade e problemas de ordem neurológica. Subscrever o contratualismo hobbesiano é, portanto, um convite à barbárie – e isso já fora descoberto há muito tempo, e por outros contratualistas: John Locke, no Segundo Tratado sobre o Governo, de 1690, afirmava que o estado de natureza (a ausência de governo) era melhor que o Estado absolutista defendido por Hobbes. Jean-Jacques Rousseau, no Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, de 1755, deixa claro que a capacidade de firmar contratos não encerra a questão dos direitos morais, incorporando, inclusive, os animais às suas considerações. Vale a pena citarmos um trecho em particular:
Dessa maneira, não se é obrigado a fazer do homem um filósofo, em lugar de fazer dele um homem; seus deveres para com outrem não lhe são ditados unicamente pelas tardias lições da sabedoria; e, enquanto não resistir ao impulso interior da comiseração, jamais fará mal a outro homem, nem mesmo a nenhum ser sensível, exceto no caso legítimo em que, achando-se a conservação interessada, é obrigado a dar preferência a si mesmo. Por esse meio, terminam também as antigas disputas sobre a participação dos animais na lei natural; porque é claro que, desprovidos de luz e de liberdade[1], não podem reconhecer essa lei; mas, unidos de algum modo à nossa natureza pela sensibilidade de que são dotados, julgar-se-á que devem também participar do direito natural e que o homem está obrigado, para com eles, a certa espécie de deveres. Parece, com efeito, que, se sou obrigado a não fazer nenhum mal a meu semelhante, é menos porque ele é um ser racional do que porque é um ser sensível (…). (ROUSSEAU, J.-J. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. São Paulo: Martin Claret, 2005, pp. 28-9 [grifo meu]).

Thomas Paine, em Direitos do Homem, de 1792, declarou que o contrato social não dava aos contratantes o direito de escravizar, dominar ou fazer guerra contra pessoas fora do contrato.

O segundo problema, de ordem prática, decorre do primeiro. Felizmente, na maioria das sociedades, e para a maioria dos indivíduos humanos, não é mais o contratualismo hobbesiano que orienta o direito legal. Este avançou, na maioria dos países – ao menos nominalmente – para um contratualismo rousseauniano, que reconhece direitos morais a todos os seres humanos que sejam portadores da nacionalidade de um determinado país. Todos os indivíduos descritos no parágrafo acima contam, hoje, com garantias para preservar seus interesses básicos à vida, liberdade e integridade física assegurados na Constituição de seus países – estes não estão mais atrelados ao exercício pleno e consciente da cidadania.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, subscrita pela grande maioria dos Estados, não faz distinção de nenhum tipo entre seres humanos, e afirma textualmente que os direitos humanos são universais, imprescritíveis, intransferíveis. Os estrangeiros, no entanto, especialmente imigrantes, nem sempre têm seus direitos humanos garantidos por lei, como podemos constatar pelos debates dentro da União Européia. Isso se deve a questões políticas e ao alcance das leis nacionais, que por definição excluem os estrangeiros. Mas também nesse terreno tem havido avanços significativos na produção de um direito cosmopolita, que não reconhece barreiras nacionais, como se vê pela prisão do ditador chileno Augusto Pinochet, na Grã-Bretanha, a pedido de um juiz espanhol, em 1998, sob acusação de violações dos direitos humanos durante a ditadura militar que comandou no Chile. Pode-se ainda argumentar que, na prática, todos os países desrespeitam sistematicamente os direitos humanos – o que é verdade. No entanto, esses direitos são reconhecidos, o que é um diferencial fundamental, pois fornece instrumentos legais para lutar contra violações dos direitos morais praticados nesses países.

Essa discussão está longe de ser esgotada. Afinal, nossa sociedade ainda funciona sob um marco jurídico em que nem sempre a ética e a política coincidem, de modo que, num embate entre ambos, sempre irá prevalecer aquilo que é legalmente justo, mesmo que seja eticamente condenável. Apenas quando o direito legal e o direito moral coincidirem plenamente, os direitos animais – e os direitos humanos – serão efetivamente respeitados e promovidos.

De qualquer modo, podemos concluir que, mesmo dentre os contratualistas, a abordagem conservadora e autoritária de Hobbes está, há muito, ultrapassada. Que ainda haja quem subscreva suas teses é um sinal de ignorância ou de hipocrisia. Mesmo a visão jurídica predominante nos dias de hoje admite que nem todo direito é um benefício obtido em troca de uma obrigação. Alguns direitos – os direitos fundamentais – são direitos inerentes, ou seja, garantias que devem ser respeitadas, independentemente de obrigações anteriores ou posteriores, única e exclusivamente em função das características próprias – inerentes – do portador desses direitos. Animais não-humanos não têm esse reconhecimento legal de seus direitos morais devido à tradição e ao especismo, e não em função de algum atributo básico que lhes falta para serem considerados membros da comunidade moral. A característica básica que faz com que todos os seres humanos sejam portadores de direito, os animais não-humanos também possuem – a sensibilidade descrita por Rousseau, que nós hoje chamamos de senciência, a qual vamos abordar detalhadamente mais adiante.

2. A objeção da biologia
A objeção da biologia, como veremos, logo se confunde com a objeção do direito. Seu patrono é o filósofo francês René Descartes (1596-1650), e se funda basicamente em dois argumentos: animais são seres autômatos, desprovidos de sensações e sentimentos; e animais são desprovidos de razão e linguagem que lhes possibilite elaborar conceitos e exprimir desejos. Como só seres humanos são portadores dessas características, apenas eles são portadores de direitos, pois apenas para eles a vida, a liberdade e a integridade física e psíquica são um bem precioso. Animais não têm interesse particular em continuar vivendo, nem em serem protegidos do sofrimento físico (pois suas respostas a estímulos externos são mecânicas, e o sofrimento envolve uma elaboração mental que exige uma racionalidade que lhes falta) nem em serem livres (pois não têm um “conceito” de liberdade).

As objeções de ordem biológica também têm dois problemas primordiais. Em primeiro lugar, a tese cartesiana é falsa porque sua própria premissa é falsa. A linguagem não é pré-requisito para ser consciente. Fosse assim, seres humanos já nasceriam falando, ou jamais aprenderiam a falar, não nascendo com esta faculdade. Afinal, é preciso, primeiro, ter consciência de um objeto para, depois, dar-lhe um nome.

Nós não protegemos apenas seres humanos que são dotados de pleno domínio da razão e da linguagem – aqueles que são conhecidos como “seres humanos paradigmáticos”. Também protegemos recém-nascidos, cujos pensamentos e desejos nos são um completo mistério; crianças, que não têm suas faculdades de raciocínio e linguagem plenamente desenvolvidas, razão pela qual, aliás, elas não podem votar; pessoas em coma ou portadoras de problemas neurológicos, temporários ou permanentes, que comprometam sua racionalidade e capacidade de comunicação. Há algum outro fator, fundamental, que faça com que estes seres humanos sejam reconhecidos como sujeitos de direitos e respeitados como tal. Assim como Hobbes para o direito, se a tese de Descartes fosse ainda tida como válida, pela biologia, esses seres humanos seriam vistos apenas como objetos.

Em segundo lugar, a tese cartesiana é falsa porque suas conclusões sobre os animais não-humanos também é falsa. Hoje em dia, nenhuma pessoa com algum conhecimento ou experiência pode, seriamente, alegar que animais são autômatos desprovidos da capacidade de sentir dor. Aqui também, as críticas não tardaram muito a aparecer. O filósofo iluminista François-Marie Voltaire (1694-1778), já no século XVIII, ridicularizou a tese cartesiana. Disse ele: “Responda-me, mecanicista: organizou a natureza todas as fontes do sentimento nesse animal com o propósito de que ele nada possa sentir? Tem ele nervos a fim de que se torne incapaz de sofrer?” O nosso conhecimento atual sobre os animais evoluiu tanto que sequer podemos seriamente discordar de que eles são dotados de raciocínio, de linguagens – muitas delas extremamente complexas, como no caso de baleias e elefantes – , de sentimentos, e que eles têm desejos e, portanto, interesse em ser livres – do contrário eles não buscariam conscientemente evitar situações dolorosas e não perseguiriam situações que foram fonte de prazer no passado.
Por que então, se não por pura hipocrisia, exigir-se-ia dos animais, para serem portadores de direitos fundamentais, critérios e pré-requisitos que não são exigidos dos seres humanos? Trata-se de uma diferença de tratamento irracional – eles, que gostam tanto de apresentar-se como guardiões da razão –, sem fundamento, e baseada, portanto, unicamente no preconceito. Preconceito contra as espécies diferentes da nossa, que, conforme definido por Richard Ryder em 1975, hoje conhecemos como especismo.

Por que animais têm direitos?
Qual é, então, o critério lógico e racional para atribuir direitos fundamentais a um indivíduo? Por que sua vida, sua liberdade e sua integridade devem ser respeitadas? Na verdade, a pista para a resposta já foi dada anteriormente. Devemos proteger aqueles seres que, por sua vulnerabilidade, são dotados da capacidade de sofrer – um sofrimento que é físico e psíquico. Em outras palavras, têm direitos fundamentais aqueles indivíduos que são seres sencientes – seres capazes de sentir dor e prazer.

Senciência é um mecanismo de defesa típico do mundo animal, que serve como um alerta para situações potencialmente nocivas à vida do indivíduo. Ao desencadear-se o mecanismo da dor, o indivíduo protege-se, afasta-se da fonte da dor, para preservar sua vida. Este ato é muitas vezes instintivo – mesmo num ser humano. Ao retirar a mão do fogo, por exemplo, o ser humano reage antes de seu cérebro interpretar o estímulo racionalmente. Se nos fosse necessário compreender o que é fogo antes de nos protegermos dele, estaríamos arriscando nossa vida. Por outro lado, tampouco nos animais não-humanos a resposta ao perigo é meramente instintiva. A capacidade de interpretar é fundamental. Pensemos em gazelas, búfalos, zebras e outros animais que são presas de animais carnívoros: eles precisam interpretar os sinais da aproximação dos predadores – cheiros, sons, imagens – antes de estarem diante destes, caso contrário estariam em séria desvantagem; da mesma forma os predadores precisam interpretar cheiros, sons, imagens para localizar as presas e aproximarem-se sem ser notados. Se pensarmos nas plantas, entenderemos que elas não são dotadas de senciência. Seria inútil, para um ser que vive fixado à terra, sentir dor. Os animais, por outro lado, são sencientes justamente porque sua capacidade de locomover-se faz com que precisem de mecanismos para buscar e obter seus meios de sobrevivência, e fugir das ameaças à sua vida. A decorrência lógica do conceito de senciência é, portanto, que todo ser senciente tem interesse na vida e na liberdade e integridade física e psíquica.

Além disso, a vida, a liberdade e a integridade física e psíquica não são apenas atributos em que o animal tem interesse, mas são atributos do interesse do animal, ou seja, mesmo que ele não se dê conta disso, a perda de cada um deles acarreta-lhes um dano irreparável. Para os seres sencientes, a morte é um dano irreparável, pois significa a aniquilação de sua consciência e a cessação de todas as sensações e experiências que lhe produzem bem-estar. A perda da liberdade é um dano irreparável porque a liberdade é condição para viver de forma autônoma – logo, condição para a própria vida. Sem liberdade, o ser senciente está vulnerável, pois está limitado na sua capacidade de buscar sua sobrevivência e proteger-se daquilo ameaça sua vida. Torna-se dependente de outros indivíduos para manter-se vivo, e torna-se incapaz de buscar o que lhe proporciona bem-estar. A violação da integridade física ou psíquica é um dano irreparável porque representa, além do risco de perder a vida, um sofrimento inestimável.

Sem liberdade e sem integridade física e psíquica, a vida do ser senciente, se não estiver encerrada, será uma vida limitada, e portanto fonte de sofrimento. De que adianta a um ser senciente viver enjaulado, incapaz de expressar livremente sua natureza e perseguir seus interesses? Pergunte isso ao ser humano e você entenderá – o mesmo acontece com os animais não-humanos; prisioneiros, reduzidos a propriedades dos seres humanos, eles não podem ser eles mesmos, portanto têm uma vida pela metade. Não é, portanto, sem razão o ditado que afirma que, sem liberdade, a vida é uma dádiva inútil.

Conclusão
Estes são, portanto, os direitos que preconizamos para os animais não-humanos, pois são aqueles que decorrem de sua natureza senciente – natureza a qual eles partilham conosco, seres humanos. Não queremos que animais não-humanos tenham direito ao voto, ou à educação, pois estes não fariam nenhum sentido para eles. Os direitos fundamentais que queremos estender para todos os animais foram aqueles consagrados como os direitos humanos de primeira geração – os direitos à vida, à liberdade e à integridade física e psíquica. Nós defendemos que esses direitos não são exclusivamente humanos. São direitos animais.

Os direitos animais são assim chamados porque são direitos morais que são relevantes não apenas para seres humanos, mas para todos os animais. Isso porque são direitos que se referem a interesses básicos, resultantes da própria manifestação da natureza do indivíduo – pois, em condições ideais, todos os seres sencientes nascem livres e só sobrevivem se estiverem física e psiquicamente íntegros. Esses direitos geram deveres negativos – afinal, se resultam de atributos naturais do indivíduo, não devemos interferir nos bens que são do interesse do indivíduo em decorrência dessa natureza (daí também o conceito, hoje um tanto obsoleto, de direito natural). Mas geram também deveres positivos – esses direitos devem ser protegidos e promovidos pela sociedade, e reparados se uma vez violados. No que se refere aos animais não-humanos, devemos evitar todo dano que possa ser infligido contra eles e reparar todo dano que possa ser evitado. Uma vez que seus direitos morais já são, infelizmente, sistematicamente violados, para garantir esses direitos, precisamos, acima de tudo, deixar de fazer uma série de coisas: deixar de usá-los como objetos e propriedade, deixar de explorá-los, deixar de criá-los artificialmente, deixar de caçá-los, deixar de usarmos os subprodutos da sua exploração. Mas também temos deveres positivos: lutar por mudanças; despertar consciências; promover o respeito aos animais não-humanos, enquanto indivíduos (e não apenas como membros de uma espécie); preservar o meio ambiente em que eles vivem; reparar, na medida do possível, os danos que lhes causamos em função da exploração deles e da natureza. Em outras palavras, nosso primeiro e principal dever perante os animais não-humanos é: sermos VEGANOS e VEGANAS.

[1] Cabe ressaltar que Rousseau distingue duas formas de liberdade: a liberdade natural, que implica a faculdade de perseguir seus próprios impulsos sem interferência externa; e a liberdade moral, que é a liberdade de fazer escolhas morais. Claro está que, no trecho citado, Rousseau faz referência à liberdade moral que os animais não-humanos não possuem.

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