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O assassinato de José Cláudio e Maria do Espírito Santo não será esquecido!

A noite ainda cobria a floresta quando, por volta das 4h30 da manhã da terça-feira 24 de maio, uma moto vermelha passou em frente à Encruzilhada da Morte, apelido de um boteco localizado no assentamento Praia Alta-Piranheira, na área rural de Nova Ipixuna, no Pará.

Seguiu em alta velocidade e cruzou a pequena vila de Maçaranduba. Sobre ela, dois homens carregavam uma mochila comprida. A dupla andava rápido por um motivo: era preciso chegar antes ao local planejado e preparar a tocaia. Certamente, não haveria outra oportunidade tão cedo.

Alguns quilômetros adiante, a moto parou em frente a uma ponte em más condições sobre um igarapé: uma tora de madeira semiafundada e, ao lado, uma prancha levantada. Passar ali exige cuidado. No fim da ponte, uma ladeira encobre a visão de quem a atravessa, local perfeito para emboscada. A dupla camuflou-se no mato, em um ponto de onde era possível enxergar até o topo da ladeira e não ser visto. E esperou.

Não muito longe, Maria do Espírito Santo se levantou assim que o sol surgiu por entre as árvores. Despertou o marido, José Cláudio Ribeiro, saiu pela varanda da casa, caminhou cerca de 5 metros e foi até a cozinha preparar o café. José Cláudio veio em seguida. Por volta das 7 da manhã, dia claro, o casal saiu. Passaram, como de costume, na casa de Laíse Santos Sampaio, vizinha, irmã e confidente de Maria. E foram para a cidade. Precisavam buscar logo o dinheiro que faltava para enviar à irmã de José Cláudio, que vive no Tocantins e está mal de saúde. Haviam conseguido com uma vizinha 700 reais emprestados. Mas os outros 1,3 mil reais viriam de uma amiga em Marabá. José Cláudio guiava a moto, Maria ia na garupa.

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Perto da ponte, José reduziu ao mínimo a velocidade e conduziu a motocicleta com os pés. Assim que cruzaram o igarapé, foram surpreendidos. O primeiro tiro de escopeta atravessou a mão direita de Maria e atingiu o lado esquerdo do abdome de José. Na sequência, mais tiros de escopeta e de um revólver 38, que levariam o casal à morte. Um dos assassinos retirou o capacete e a touca que escondia seu rosto. Sua-do, livrou-se da touca no local do crime. O outro puxou a faca, andou até José Cláudio, que dava os últimos suspiros, e cortou um pedaço de sua orelha direita para levar como prova do serviço realizado.

José Cláudio e Maria, ambos de 54 anos, tinham medo. Sabiam que a morte os espreitava. Em conversa telefônica no início de maio, Maria declarou que estava com muito medo, e que “as coisas estavam ainda piores”. Seu apelo é conhecido nacionalmente desde outubro de 2010, quando a revista Vice divulgou trechos de uma entrevista feita por mim. “Eu sozinha eles não me pegam. Mataram a irmã Dorothy (Stang), mas não é o caso. Era uma freira, não tinha marido. Eu tenho um marido de personalidade forte. Que já teve momento de discutir com pistoleiro. Se pegar, pegam os dois”, anteviu.

A militância do casal é fruto do desejo de viver na Amazônia e preservar a floresta. Assentados, tornaram-se voz -ativa contra a concentração de terras, o contrabando de madeira e a produção ilegal de carvão. Acumularam muitos e poderosos inimigos: madeireiras, donos de carvoaria, grileiros, pecuaristas, industriais da siderurgia e até mesmo assentados como eles que se dedicam a extrair madeira de forma ilegal. Nunca se intimidaram e pagaram o preço. Dois dias depois, outro pequeno agricultor, Herivelto Pereira dos Santos, também seria morto. Até agora, a polícia não estabeleceu conexões entre os crimes, mas parece lógico que há aí, no mínimo, uma escalada da violência decorrente do clima tenso. José Cláudio até desconfiava do preço por sua cabeça: 5 mil reais. Há quem fale no dobro, por causa de sua posição de liderança.

As denúncias dos crimes ambientais feitas pelo casal ficaram mais intensas a partir de 2007, depois de serem excluídos da diretoria da Apaep, associação de assentamentos onde viviam. José e Maria acusavam a Apaep de ter se unido a carvoeiros e madeireiros ilegais. Ao mesmo tempo, em consequência do crescimento econômico experimentado pelo País e de novos projetos siderúrgicos na região, Marabá alcançou uma população de 233 mil habitantes. Isso representa demanda por mais casas, mais ruas, mais bairros. As árvores do entorno, principalmente as castanheiras sobreviventes do intenso período da exploração madeireira entre 1985 e 1995, viraram a matéria-prima da construção civil. Segundo documentos em meu poder, até o Incra valeu-se de madeira ilegal. Uma distribuidora e uma construtora, a Santa Bárbara, foram autuadas em agosto de 2010 pelo Ibama por venda e utilização de partes de castanheiras, cuja derrubada é expressamente proibida. O Incra-, que deveria proteger o assentamento e dar subsídio ao extrativismo, contratou a construtora que ergueu casas no projeto de -Assentamento 26 de Março.

Igualmente enfrentavam os pecuaristas e suas ações ilegais para acumular terras. Em 17 de novembro do ano passado, por intermédio de José Cláudio, o assentado Francisco Tadeu Vaz e Silva denunciou à Comissão Pastoral da Terra que Neusa Santis, do cartório de Marabá, teria usado “laranjas” para obter lotes na região e depois revendê-los para um tal José Rodrigues. Este e Genival Olivaria Santos, conhecido como Gilzão, acompanhados por policiais, teriam expulsado Vaz e Silva de seu terreno. O próprio José Cláudio denunciou posteriormente Neusa Santis ao Incra.

O casal encaminhou outras tantas denúncias aos órgãos competentes. Em uma delas, enviada ao Ministério Público, anotou:

“O mais angustiante é que está sendo destruído todos os castanhais de dentro do projeto, e até o momento não está sendo feito nem uma ação por parte do Ibama, e o mesmo sabendo de todos os fatos que vem acontecendo no projeto, no desrespeito à extração de Castanheiras e na instalação de Fornos de Carvão e destruição de açaizais, andirobeiras e outras espesses (sic) que estão em extinção”.

Diziam-se também preocupados com a concentração de terras e suas consequên-cias: o desmatamento de grandes áreas e a extração ilegal de madeira. José e Maria chegaram a listar os principais madeireiros da região, todos de uma mesma família: Aguilar Tedesco, o patriarca, Aguimar Tedesco, o filho, Marlu, Marlos Ailton Tedesco, que seria um sobrinho (grau de parentesco não confirmado). O engenheiro florestal responsável pelos planos seria Edimilson Macedo dos Santos, conhecido como Bobo. A acusação- data de 13 de novembro de 2007.

A denúncia ao MP deu início a uma investigação. Instigado pela Procuradoria, o Ibama decidiu agir e todas as madeireiras da cidade passaram a ser vistoriadas. As empresas da família Tedesco foram multadas e embargadas. Mas, à medida que eram lacradas, novas companhias eram abertas no lugar, com outra estrutura jurídica. A Tedesco Madeiras Ltda., de 2007 até hoje, foi multada em 820 mil reais. Uma mudança radical e um baque em suas finanças. Só para se ter uma ideia, nos seis anos anteriores, as autuações das empresas do grupo não haviam somado 10 mil reais. Só a Madeireira Eunápolis, uma das principais da família, que entre 1999 e 2006 foi multada em míseros 4,3 mil reais, acumula autuações em quase 180 mil reais desde 2007.

Na entrevista de outubro de 2010, Maria se mostrava surpresa com a ação do Ibama, já que a denúncia havia sido encaminhada ao MP. No dia seguinte à maior operação realizada pelo instituto ambiental, um pistoleiro teria sido enviado para matar seu marido. Conta ela que um rapaz teria simulado um problema em uma moto e procurado pelo socorro de José Cláudio. A sorte é que ele não estava em casa e o homem foi embora.

Além da vistoria das madeireiras, o Ibama- intensificou, a partir das denúncias do casal, a fiscalização dos caminhões que transportavam carvão ilegal para as siderúrgicas de Marabá. As principais consumidoras seriam a Sidepar e a Cosipar.

Para os assentados que não queriam mais o extrativismo, o carvão passou a ser importante fonte de renda, e uma moeda política nas eleições das assembleias da associação. O carvão ilegal custaria cerca de 30 reais o metro, o que poderia render até 2 mil reais por mês. Some-se o valor pago pelas toras e os assentados teriam um ganho rápido.

“Se eu vendo uma árvore, ela me dá dinheiro uma vez. Se protejo, ela me dá dinheiro todo ano”, me disse José Cláudio em outubro, ao criticar a falta de perspectivas dos colegas de assentamento.

No último ano, as ações do Ibama eram capitaneadas por Roberto Scarpari, conhecido pelo rigor no combate aos crimes ambientais. O casal se encontrou várias vezes com Scarpari, a quem sempre elogiou. O problema é que as ações de -repressão do Ibama não foram acompanhadas de outras investigações para estabelecer a ordem na região. Os denunciantes, em consequência, ficaram expostos.

O Ibama repassava as denúncias ao MP, que as encaminhava à Polícia Federal. Mas os federais, sob a justificativa (errônea) de que os crimes denunciados não eram da esfera federal, nunca as investigaram, nem as ameaças contra o casal. Foi outro órgão público, o Incra, que apontou o “equívoco” da PF: “Trata-se de área pública incorporada e sob o domínio da União”. Logo, de competência federal. Até 18 de abril de 2011, data da última manifestação do MP, não havia sido instaurado nenhum inquérito policial sobre os fatos, embora as denúncias de José e Maria, e as ameaças contra eles, já há muito tivessem se tornado públicas.

O casal não confiava na polícia de Nova Ipixuna. “Teve madeireiro que ameaçou agricultor. Chegou com a polícia, em um desses núcleos, ele trouxe a polícia disfarçada de fiscal, entrou no lote de um agricultor e tirou toda a madeira”, me contou Maria. A tática de José para sobreviver era alterar os caminhos por onde passava, sem nunca repetir as rotas. Só uma traição, portanto, poderia conduzir os matadores até eles.

O enterro do casal provocou comoção. Uma multidão despediu-se de José e Maria cantando o Hino Nacional. No fim, uma das assentadas repetia aos berros a frase: “Verás que um filho teu não foge à luta”. Deputados, representantes dos movimentos sociais, da PF e do Ibama se reuniram após o evento, enquanto helicópteros sobrevoavam a área. Mas nem todo esse aparato intimidou a pistolagem. No mesmo dia, a oito quilômetros das lápides do casal e três horas depois de os túmulos serem cobertos por terra, Erivelton foi morto. Encontrado no sábado pela manhã, ele havia levado um tiro na cabeça e outro no peito, método notório de execução. Como não se apontou relação entre as mortes, o assassinato de Erivelton será investigado pela polícia local.

No sábado 28, familiares de José Cláudio e Maria tentaram levantar o nome de suspeitos do crime. Decidiram ainda pleitear que a casa onde vivia o casal seja transformada em uma Reserva Particular- do Patrimônio Natural (RPPN), forma de homenagem. Os parentes acreditam que a tentativa de levantar dinheiro para salvar a irmã possa expor o casal, sempre tão cuidadoso. Falam em traição vinda do próprio assentamento: alguém teria avisado os mandantes (seria não um, mas um consórcio) da viagem a Marabá e do possível trajeto do casal. “Alguém daqui de dentro traiu eles e informou que eles estavam indo para a cidade. Avisaram os pistoleiros”, afirma a irmã mais nova de José Cláudio, Claudenice Santos.

Maria, quando viva, queria ter feito mais uma denúncia, desta feita sobre a colônia de pescadores do lago de Tucuruí, no limite do assentamento. “Há mais de mil inscritos, mas eles não chegam a cem. Tão recebendo dinheiro de aposentadoria sem ser aposentados.” Queria fazer a denúncia bem organizada, ela disse. Seu senso de justiça não tolerava o roubo ao dinheiro público. Foi silenciada antes, da mesma forma banal com que vidas são ceifadas no meio da floresta. Na lei da selva, o pistoleiro e o mandante sempre vencem. Será diferente agora?

Por Felipe Milanez para Carta Capital.

 

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