O fato do Brasil ser um país que nunca nutriu em seu povo a paixão pela leitura, pelos estudos, pelos debates no nível da razão, pelos raciocínios lógicos bem encadeados, faz com que essa mazela também atinja em cheio o movimento animalista.
É comum ouvirmos que os direitos animais e o modo de vida vegano são coisas de pessoas de classe média e alta. Movimento de burguês. Vejo uma contradição aqui em termos pedagógicos. No Brasil a Educação é nitidamente uma questão de classes. Os ricos ou burgueses têm capitais (econômico, cultural, social) a transmitir aos seus filhos; os pobres ou a massa vive no lado oposto, na ausência desses capitais. Logo, como entender a hercúlea dificuldade do movimento animalista – burguês segundo alguns – tem em entender e utilizar os conceitos de forma correta se são eles dotados de um capital intelectual e cultural privilegiado? O não uso correto dos conceitos no Brasil, não tem a ver com riqueza e pobreza culturais, mas na sua grande maioria, com ação de má-fé. Estudar ética prática e usar de forma correta conceitos e termos também exige mudança de atitude, de perspectiva, exige coerência no falar e no agir (práxis) e é aqui que mora o problema.
Os seis conceitos que considero os mais recorrentes nos debates sobre os direitos animais são: bem-estarismo, especismo, ética, senciência, veganismo e vegetarianismo.
Bem-estarismo
Corrente filosófica, cientifica e jurídica que defende a diminuição do sofrimento dos animais não humanos, a eliminação da dor física e das formas de manejo e confinamento que possam produzir um grande dano neles (como produtos, como propriedade, como fonte de lucro).
O bem-estarismo propõe novas leis para diminuir a dor e sofrimento dos animais, mas não os vê como pessoas, indivíduos sencientes que não querem ser usados como coisas, a ideia é minimizar os danos no produto. O bem-estarismo defende maneiras menos dolorosas de exploração, como jaulas maiores, abates “humanitários”, criação extensiva, experimentação com anestésico, ou seja, o status de propriedade dado aos animais não humanos há séculos continua na proposta bem-estarista.
Para o bem-estarismo a vida dos animais não humanos tem menor valor moral que a dos animais humanos, por isso, sua atuação é direcionada a melhorar as condições em que os animais não humanos se encontram nas fazendas industriais, nos laboratórios, nos parques de entretenimento, e em todos os locais onde se encontram confinados. O bem-estarismo não vê problema algum no uso que fazemos dos outros animais, o problema, para os bem-estaristas está na maneira como usamos.
Especismo
O criador da palavra especismo, o psicólogo Richard Ryder, se refere a ela assim:
“Eu uso a palavra ‘especismo’ para descrever a discriminação generalizada praticada pelo ser humano contra outras espécies, e para estabelecer um paralelo com o racismo. Especismo e racismo são formas de preconceito que se baseiam em aparências – se o outro individuo tem um aspecto diferente deixa de ser aceito do ponto de vista moral. O racismo é hoje condenado pela maioria das pessoas inteligentes e compassivas e parece simplesmente lógico que tais pessoas estendam também para outras espécies a inquietação que sentem por outras raças. Especismo, racismo (e até mesmo sexismo) não levam em conta ou subestimam as semelhanças entre o discriminador e aquele contra quem este discrimina e ambas as formas de preconceito expressam um desprezo egoísta pelos interesses de outros e por seu sofrimento”.
Ou seja, na prática, sempre que se vê um pássaro na gaiola, um peixe num aquário, ou um mamífero não humano preso a uma corrente, está-se vendo especismo. Se alguém acredita que uma abelha ou uma rã tem menos direito à vida e à liberdade do que um chimpanzé ou um humano, ou considera animais humanos superiores a outros animais, está apoiando o especismo. Quem visita prisões aquáticas e zôos (prisões terrestres), vai a circos que incluem apresentações com animais não humanos, veste pele não humana, ou come carne, ovos, mel, leite e derivados, pratica o especismo.
Se faz campanha para abates “humanitários” para vacas e galinhas ou confinamento menos cruel para suínos, perpetua o especismo. E o mal herdado da moral tradicional dos “bons costumes” torna-se natural e institucionalizado, e de geração em geração a barbárie vai se banalizando. Infelizmente, é simples assim.
Ética
Ramo da filosofia que investiga, reflete e cria teorias sobre a natureza do certo e do errado, bem e mal, responsabilidade, dever, obrigação, escolha, liberdade, virtude, normas morais e juízos de valor.
O biólogo e etólogo Marc Bekoff nos agracia com a seguinte reflexão:
“sabemos que os animais sentem emoções e sofrem em nossas mãos, e isso acontece em nível global. A ética, com E maiúsculo, precisa ter um lugar em nossas atuais deliberações sobre como interagir com outros animais. E estou me referindo à ética da maneira como Sócrates a via, como a noção de “como devemos viver”. A ética requer uma avaliação crítica de quem somos e do que fazemos, justamente com uma visão do que queremos ser. A ética nos ajuda a calcular o melhor curso da ação quando existem muitas opções e as nossas informações são incompletas, condicionais ou conflituosas. Podemos nunca atingir o nosso ideal, mas é necessário formular um que nos sirva de orientação para que façamos escolhas melhores. Quando se trata de nosso relacionamento com os animais a nossa visão de quem eles são e do que significam para nós requer que mudemos o modo como sempre os tratamos. Sabemos que os seres animais não são “coisas” que existem para nossa conveniência. Os animais são seres subjetivos que têm sentimentos e pensamentos, e merecem respeito e consideração. Não temos o direito de subjugá-los ou dominá-los em proveito próprio – fazer com que a nossa vida fique melhor tornando a vida dos animais pior.”
Senciência
O conceito de senciência tem sua origem na junção dos termos “sensibilidade” e “consciência”. Vemos em vertebrados e invertebrados características que os tornam sencientes. Aos animais em relação aos quais podem surgir questionamentos, sobre, serem eles, ou não, sencientes, por uma questão de coerência concede-se o benefício da duvida.
A pensadora Mary Midgley é categórica ao dizer: “não, não somos como os animais, somos animais também”.
A pergunta que sempre retomo é, qual a dificuldade em reconhecermos que somos só mais uma espécie entre milhões de outras? Negar a senciência, as emoções e sentimentos em outros animais é negar a própria animalidade que nos define. O que sentimos, eles também sentem, cada um a sua maneira, cada um na sua singularidade. Assim como nós, eles também querem viver livremente com os seus e felizes, comendo e bebendo o que escolheram comer e beber; brincando e se divertindo com quem escolheram brincar; servindo quando achar necessário para o bem do outro que está com ele; copulando com quem escolheram copular. Assim como nós… Simplesmente.
Veganismo
O termo “veganismo” foi criado em novembro de 1944 em Londres por Donald e Dorothy Watson, Elsie Shrigley e outros dissidentes da Vegetarian Society.
A insatisfação com o foco de a sociedade vegetariana ser apenas a abstenção de carne (no singular, pois o vegetarianismo pregado de forma errônea pelas sociedades vegetarianas espalhadas pelo mundo é não comer carne bovina) levou esses dissidentes a fundarem a Sociedade Vegana, que estabeleceu um novo modo de vida: o Veganismo.
Veganismo é um modo de vida ético que busca a abolição do uso que tradicionalmente os humanos fazem dos outros animais, para alimentação, lazer, vestuário, ciência e companhia. Veganismo é o primeiro passo na construção de uma biografia genuinamente ética, na direção da abolição da exploração animal e, não o último, como muitas pessoas pensam.
Veganismo não é reservado a iluminados, puros, espíritos elevados, etc. Adotar o modo de vida vegano é escolher conscientemente – sabendo dos riscos e adversidades – um projeto existencial genuinamente ético e do mais puro altruísmo; é construir autonomamente sua biografia. Algo que está ao alcance de todo agente moral.
Praticar o veganismo é dedicar até o fim da vida aos estudos filosóficos, etológicos, nutricionais, políticos e históricos. Para isso é importante saber que a primeira mudança ao adotar esse modo de vida é interna, espiritual, no plano conceitual. Abandonar conceitos e expressões especistas. Procurar entender, compreender e aplicar a ideia de que todos os animais humanos e não humanos devem ter os mesmos direitos morais básicos respeitados. A mudança é interna, deixar de ver os outros animais como coisas, produtos e passar a vê-los como pessoas. Para essa mudança ocorrer de fato, para que a consciência se expanda é preciso muito estudo. Preguiça intelectual e analfabetismo funcional animalista não combinam com o modo de vida vegano, é na verdade uma contradição e provoca o chamado “tiro no pé” da causa animalista.
Adotar o modo de vida vegano é abolição não só do uso e exploração das outras espécies, mas abolição de toda emoção negativa para com os humanos que ainda não percebem a incoerência ética de suas ações especistas, e o mal que advém dessas atitudes. O veganismo é fundado no principio da não-violência (ahimsa), logo, cabe aos veganos e veganas se opor a lei de Talião. Nada mais contrário ao princípio básico pacifista do veganismo que vermos veganos e veganas pregando ódio a animais humanos que exploram, torturam e consomem outros animais; essa postura inaceitável vindo de quem se diz vegano ou vegana é a demonstração clara de que é mais fácil odiar e propagá-lo do que educar e conscientizar.
Educar veganamente sem imposições, autoritarismos e belicismo é um trabalho árduo, cansativo e exige muita paciência, mas é a única via eticamente aceitável.
Vegetarianismo
É uma corrente dietética que preconiza a alimentação de origem vegetal. Logo, a pessoa que se abstém de carne (no singular, é bom ressaltar, para se referir somente à bovina, pois para o imaginário coletivo, peixes, aves, suínos são compostos de qualquer coisa menos carne, graças à propaganda das sociedades vegetarianas que divulgam há mais de um século essa incoerência), mas continua a consumir ovos, leite, laticínios, mel, cochonilha, peixes, aves, ou qualquer outro ingrediente de origem animal, não é vegetariana.
Essa incoerência, e até um crime contra os animais não humanos, gera contradições em termos como: ovolactovegetarianismo, lactovegetarianismo, ovolactoapivegetarianismo, e por aí vai. São muitas as contradições em termos para legitimar o consumo biocida de secreções, menstruação e vomito de fêmeas de outras espécies.
Vou repetir: se a pessoa tirou um produto de origem animal do prato, mas come outro, ela não é vegetariana.
Ser vegetariano é ser adepto de uma dieta exclusiva do reino vegetal.
Quando se trata de vegetarianismo, duas situações são corriqueiras em termos conceituais: a primeira é a da pessoa que há anos se acha vegetariana, pois acredita, já que foi dessa forma que a ensinaram, que não comer carne é ser vegetariano. Muitos até dizem: “Sou ovolactovegetariano”, como se essa frase representasse um “sou vegetariano”.
Aí se uma pessoa mais atenta aos conceitos, diz: “não, você não é vegetariana. Você não come carne bovina, nada mais”. Essa fala é encarada como a máxima das ofensas, o até então “vegetariano” (que come de tudo menos carne bovina) sente-se como se tivesse um status rebaixado: “você esta dizendo que não sou mais vegetariano? Eu sou vegetariano sim, e há mais de 10 anos”. Não, você não deixou de ser vegetariano, na verdade, você nunca foi.
A segunda situação é a infeliz insistência de muitos ativistas veganos de longa data em continuar falando, escrevendo e propagando o termo “vegetarianismo” como quem não come carne. Ou seja, tanto leigos quanto ativistas veganos de longa caminhada têm sérias dificuldades em usar o conceito de forma correta. Preferem continuar divulgando o antiquado equívoco das sociedades vegetarianas.
A partir da insistência em continuar divulgando um conceito errado, surge a questão: “Se vegetarianismo é uma dieta exclusiva do reino vegetal, qual o motivo de denominar quem se alimenta assim de vegetariano estrito?”
A caminho do respeito aos direitos morais básicos
Todos os animais têm uma vida própria que é importante para eles, à parte da utilidade que possam ter para nós. Eles não só vivem vagueando pelo mundo como pensam especistas e bem-estaristas, mas são conscientes dele. A vida de um animal é composta de muitas necessidades biológicas, espirituais e sociais; sua satisfação é fonte de prazer e felicidade, sua frustração ou contrariedade é fonte de sofrimento e dor. Nesse ponto fundamental, não há distinção entre os animais aprisionados em laboratórios, nas fazendas industriais, nos zoológicos, ou em qualquer cativeiro, com os humanos excluídos, aprisionados, sequestrados, escravizados, torturados…
Assim, do ponto de vista ético, e como diz Ryder, toda pessoa inteligente e compassiva hoje não aceita que o ser humano seja tratado como recurso de outrem, esse princípio deve também ser aplicado aos outros animais. Não tem outro caminho a não ser reconhecer que ambos, animais humanos e não humanos, precisam ter seus direitos morais básicos respeitados. Tom Regan coloca que “a filosofia dos direitos animais apenas exige que essa lógica seja respeitada”.
A função de todas as veganas e veganos no geral e, todos educadores veganos em especial, é levar a razão ao limite, em termos kantianos, “ousar fazer uso de seu próprio entendimento sem a tutela e o cerceamento de outro”. Depois de levar essa razão ao extremo, voltar, e apresentar bons argumentos que façam os outros, em especial os relutantes, pensarem sobre seu modo especista de se relacionar com o mundo. Para ter uma mudança de hábitos, é preciso, primeiro, ter uma mudança de mentalidade. O primeiro combate a ser travado é no plano conceitual, campo por excelência filosófico como pontuaram os pensadores Félix Guattari e Gilles Deleuze na obra “O que é a Filosofia?”.
Ou seja, precisamos estudar ética prática de forma séria, minuciosa. Não é aceitável o analfabetismo funcional animalista. Não há espaço para reformas bem-estaristas, não são jaulas maiores, mas jaulas vazias; não são baias maiores, mas baias vazias; não são abates “humanitários”, mas o fim do abate.
Os direitos animais não aceitam as reformas das injustiças, pois não é aceitável reformas de trabalho infantil, nem reformas na histórica submissão que as mulheres foram submetidas ao homem.
Todos os ativistas veganos e educadores veganos deveriam se dedicar aos estudos de ética aplicada, de maneira séria, para que através do conhecimento tenham consciência que para muitas pessoas, nossos argumentos, nossa base lógica, nosso raciocínio ético, não vale de nada.
Para muitos especistas e bem-estaristas, os outros animais são coisas, produtos, inferiores e ponto. Não tem exemplo de empatia, altruísmo e raciocínio que convença especistas crônicos a mudar de perspectiva e ver que sua vulnerabilidade a todo tipo de dano é a mesma em todo ser animado. Essa situação criou um senso comum dentro da causa animal no Brasil, a idéia é a seguinte, toda vez que um ativista ou teórico da causa bate na tecla dos conceitos, do apego aos termos certos, a frase que sempre vem como resposta é: “Vocês gostam de ficar rotulando os outros” ou “eu não sigo rótulos”.
Não são meras palavras, são conceitos que surgiram de reflexões deliberadas e que balizam os caminhos do movimento animalista, como muitos outros conceitos guiam muitos outros movimentos de justiça social.
Não são rótulos no sentido pejorativo como fazem crer especistas, bem-estaristas e não comedores de carne que se acham vegetarianos, são conceitos construídos por uma longa tradição de pensamento ético. É interessante notar que essas pessoas do “não me rotule” seguem e se agarram a uma infinidade de rótulos quando lhe convém.
Lidar cotidianamente com essas pessoas não é motivo para sermos analfabetos funcionais animalistas, pelo contrário, existe um mar de relutantes a nossa volta, é pra eles (e em nome dos animais usados e explorados) que precisamos apurar nossos conhecimentos, estudando seriamente, e usando de forma adequada os conceitos.
Obs: esse texto foi basicamente extraído da obra “Educação vegana: tópicos de direitos animais no ensino médio” com algumas alterações.
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